Fonte: Jorge Cruz Jr. – Apostila de Cinema

Seguindo o caminho tradicional das comédias francesas de buscar nas relações sociais atuais argumentos para seus filmes, “O Bom Doutor” é mais um exemplo do audiovisual contemporâneo que nos faz refletir sobre o combo de ideias envolvendo empreendedorismo, meritocracia, produtividade e o contexto do fim do emprego conforme conhecemos. Isso tudo, claro, no contexto de um grande centro urbano, afinal, nós sempre temos Paris.

Ou você pode querer não encontrar nada disso na trajetória de Serge (Michel Blanc), um médico veterano que vive uma atípica véspera de Natal. Essa é a graça de obras como “A Boa Esposa” (2020) e “Notre Dame” (2019), para citar mais duas que – assim como o longa-metragem dirigido por Tristan Séguéla, chegaram ao circuito comercial brasileiro em 2021. O escapismo é permitido, mas aqui é possível que o entretenimento soe incompleto a alguns. Para rir das sugestões de comédia do roteiro que o cineasta escreve ao lado de Jim Birmant, é preciso aceitar a dura realidade de uma cidade desenvolvida e cosmopolita como a capital da França – e os desafios que carregam consigo.

Na sequência inicial, em que Serge atende um bebê com laringite, podemos ser levados a uma ideia de drama familiar, Aos poucos, “O Bom Doutor” vai fazendo com que o humor tome conta, sempre de maneira situacional. A base da trama é a de um protagonista abalado com a perda do filho, flertando com o agravamento do vício em álcool e, sobretudo, desmotivado e cansado de uma pressão em seu trabalho que já mostrou que não cessará. Seu encontro com Malek (Hakim Jemili) é bem simbólico. Afinal, enquanto o médico parece viver sufocado, assistindo seus sonhos da aposentadoria e uma vida tranquila morrerem pela forma como a sociedade mudou, o rapaz surge como um representante de uma geração ainda mais sem perspectiva. Entretanto, no choque de personalidades, o otimismo e planos de crescimento do mais novo se tornam pontos de equilíbrio da impaciência do mais velho.

Claro que o objetivo que traz o ritmo do filme é nos divertir nas cenas em que o entregador assume o papel de doutor, enquanto passa informações pelo telefone para o verdadeiro profissional. Porém, o que se destaca são os diálogos de mediação entre eles. Ali temos o testemunho de um jovem que não vê a educação formal e o diploma de graduação como uma meta relevante para o seu futuro, ao mesmo tempo em que registramos um profissional em fim de carreira pouco disposto a se adaptar às exigências de um mercado que prioriza a quantidade, mas não deixa de questionar a qualidade no mais alto grau. Malek se parece mais convencido do destino, comprou a ideia do falso empreendedorismo e não aceita ser chamado de entregador e sim de empresário.

“O Bom Doutor” é mais uma obra que nos questiona para onde estamos indo. O passivo da classe trabalhadora no futuro, cada vez mais automatizado e independente do conhecimento humano, vem nos tornando peças de uma engrenagem (tal qual o clímax de “Carro Rei“, vencedor do Festival de Gramado na semana passada). Por trás da comédia leve, do passatempo que a forma tradicional de cinema e a escola francesa nos permite, restará ao observador mais atento a dúvida: não sou eu, também, parte desse jogo?

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