O Livro dos Prazeres” dimensiona a sensibilidade de Clarice Lispector
Dirigido por Marcela Lordy, filme faz o espectador mergulhar nas emoções da protagonista Lóri por meio dos recursos audiovisuais
Fonte: Paula Jacob – Claudia
Adaptar um livro de Clarice Lispector não é tarefa fácil. Ler já é difícil se não existe a atenção plena, imagina pensar nas construções de fluxo de consciência (quando o texto se passa na cabeça do passa na cabeça do personagem) em uma narrativa lógica de começo-meio-fim para um formato diferente de páginas amareladas. Sorte que existem mulheres dispostas a dissecar essa linguagem e nos presentear com filmes tão doces quanto O Livro dos Prazeres.
Dirigido por Marcela Lordy e escrito por ela ao lado de Josefina Trotta, ele acompanha a história de Lóri e do seu encontro mais íntimo com as próprias emoções, através do amor, da perda, do carinho, do intelecto, do afeto, e coloca a mulher como protagonista da sua vivência. “Sempre gostei muito de Clarice, desde jovem, mas só fui ter contato com Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres após o meu divórcio de um casamento de 10 anos. Ali, me conectei imediatamente com a Lóri [no filme, interpretada brilhantemente por Simone Spoladore]”, conta a diretora à CLAUDIA.
Para um livro que começa com uma vírgula e termina com dois pontos, Marcela conseguiu transitar entre a descontinuidade por meio de muito diálogo com a equipe, principalmente com Simone. “Ela é muito sensível, culta, inteligente. Sua experiência com o balé também acrescenta uma consciência corporal importante para essa personagem que é bastante silenciosa. Aprendi muito com ela, tão generosa e brilhante”, comenta.
A narrativa que começa forte e melancólica atravessa maremotos para chegar num lugar de calmaria. Nela, Lóri precisa lidar com os trâmites burocráticos da morte de sua mãe, que lhe deixa um belo apartamento de frente para o mar do Rio de Janeiro. O passar do tempo é marcado por uma rotina meio sem rotina da professora de Ensino Médio que foge da cobrança familiar e se esconde nos encontros amorosos. Em uma casualidade, ela conhece o professor de filosofia Ulisses (Javier Drolas, conhecido por Medianeras), que a deixa imediatamente intrigada.
Tateando os terrenos do coração, ela vai deixando pedaços de si a cada novo momento a dois com ele até descobrir-se, enfim, inteira – e não por ele ou para ele. “Ainda na faculdade de cinema, percebi o quanto os filmes brasileiros sempre colocam a mulher no lugar de objeto, com corpos dilacerados. Não tem essa coisa do sujeito ditando e bancando as escolhas. Por isso, ao ver essa mulher plena, num processo de construção interna, me fascinei”, elabora.
A delicadeza de Clarice Lispector para dar conta, em breves páginas, da magnitude dessa transformação pessoal, da qual Lóri é quase um Ulisses homérico das aventuras internas que formam a maturidade, é emocionante. Também o é, e em diferentes escalas, a adaptação para um contexto mais contemporâneo: a grande sacada da cineasta foi entender onde mora a sua licença poética e criar novas ferramentas de imersão. “O livro é pura literatura, então a adaptação ficou no lugar de captar a essência da história e transpor para uma linguagem de cinema, com a fotografia e o design de som, por exemplo”, explica. “Fui me tecendo enquanto autora junto com a personagem que vai encontrando a sua própria voz”, diz. E nós, espectadores, nos tecemos juntos com essa protagonista tão corajosa.