Longa trabalha diversos temas com histórias de personagens que se reúnem num café em Londres

Fonte: Diogo Bercito – O Tempo

Há algo no filme “Bagdá Vive em Mim” que lembra um episódio de “Friends”. Como a série americana, o longa narra a história de um grupo de amigos reunidos num café. Tem essa qualidade rara das produções que conseguem criar vínculos convincentes entre os personagens na tela.

O gênero, porém, é outro – um drama. Os personagens de “Bagdá Vive em Mim” não se sentam nas mesas do Café Abu Nawas para rir do dia. Eles se apoiam nas xícaras e no fumo para sobreviver à vida em Londres, longe de seu Iraque natal.

Em comum, os personagens têm a origem. Há o escritor que, depois de migrar, precisa trabalhar como guarda noturno num museu. Há a arquiteta que, sem poder validar o diploma, virou garçonete. Há o técnico de informática homossexual que esconde o namorado. E o jovem que vai a uma mesquita radical ouvir os sermões de um clérigo fundamentalista.

O diretor iraquiano Samir – que se apresenta assim mesmo, com um nome só – aborda algumas das questões fundamentais da experiência da diáspora, do exílio, do refúgio. Um dos temas de mais força, nesse filme de produção europeia, é a dificuldade de deixar o passado para trás.

O caso do escritor Taufiq é instrutivo nesse sentido. Ele fugiu do Iraque do ditador Saddam Hussein, que perseguia comunistas como ele. A memória da tortura que ele sofreu não esmorece. O fato de que ele trabalha de guarda noturno em um museu com uma coleção mesopotâmica não ajuda. A cena de abertura do filme o mostra iluminando, com a lanterna, altos e baixos relevos da Antiguidade –cenas quiçá da Babilônia ou de Assur, duas cidades do Iraque de outrora.

Um outro tema central à experiência dos migrantes, como os que frequentam o Café Abu Nawas, é a reprodução de algumas das dinâmicas sociais trazidas de seu país de origem. Isso fica bastante claro com o personagem de Amal, a garçonete.

Ela vive uma tensão constante entre seu desejo por liberdade, em Londres, e a pressão da comunidade iraquiana local. Há uma expectativa, por exemplo, de que Amal se case com um homem iraquiano. Ela se apaixonou por um britânico, porém.

Outro personagem que vive essa dualidade -os valores de Londres intercalados aos de Bagdá– é o técnico de informática Muhannad. Gay, ele lida com as risadas abafadas dos outros iraquianos, suas provocações, suas críticas. Lida também com a lembrança da perseguição a homossexuais em seu país natal. Uma delas é especialmente forte -a de um homem morto a tijoladas, no Iraque.

Samir explora ainda um outro tema delicado, o fundamentalismo religioso. O diretor trata isso por meio de Nassir, um jovem frustrado que é convencido por um clérigo a professar um islã radical.

São bastantes temas para um longa com pouco menos de duas horas. A montagem é por vezes brusca e talvez o diretor pudesse ter se concentrado em uma ou duas questões, em vez de todas. Mas, de alguma maneira, “Bagdá Vive em Mim” funciona. Há essa imagem caleidoscópica da vida no exterior, suas violências. O filme mostra, também, como as diásporas são variadas.

Há, ainda, uma solidariedade contagiante no longa. Algumas cenas são particularmente felizes, ao representar o sentimento comunal dos personagens, que por vezes se reúnem -mesmo brigando- em torno de um prato típico, evocando suas lembranças mais caras da terra natal.

Os personagens dos velhinhos comunistas são especialmente saborosos. O momento em que colocam uma foice e um martelo no topo da árvore de Natal é de uma leveza só e conta muito sobre o Iraque que essas pessoas deixaram, marcado pelos conflitos entre regime e comunismo.

Como um bom episódio de “Friends”, “Bagdá Vive em Mim” deixa saudade quando os créditos rolam. Tanta coisa aconteceu no Café Abu Nawas. Quem dera fosse possível passar por lá, se sentar com os personagens, perguntar o que aconteceu desde o fim do filme, ouvir suas histórias sobre o Iraque e sobre o que eles deixaram para trás.

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