Crítica | Os Segredos do Universo mostra que o cinema é o lar natural do subentendido
Filme adaptado de best-seller gay é carregado por imagens significativas
Fonte: Caio Coletti – Omelete
É lugar-comum afirmar que uma das grandes dificuldades de adaptar um livro para o cinema é transportar o diálogo interno que faz parte de quase toda narrativa literária para a tela. A narração em off nem sempre funciona bem no cinema, mas se livrar dela completamente nessas adaptações literárias significa eliminar grande parte das impressões e sentimentos telegrafados pela prosa, que frequentemente estão por trás das decisões mais consequentes tomadas pelos personagens.
É um dilema que existe desde que o cinema é cinema, mas o grande triunfo de Os Segredos do Universo por Aristóteles e Dante está justamente em fazê-lo parecer trivial. Adaptando o livro de Benjamin Alire Sáenz, que virou fenômeno editorial ao contar a história de dois rapazes de ascendência latina que se apaixonam no decorrer de um par de verões no Texas dos anos 1980, a diretora e roteirista Aitch Alberto (estreante em longas-metragens) postula que, se a literatura é o domínio do diálogo interno, o cinema é o lar natural do subentendido. No livro, a linha; na tela, a entrelinha.
E isso é crucial na história de Aristóteles e Dante, porque o romance entre os dois só desabrocha depois que ambos (mas, principalmente, Aristóteles) se desembaraçam de algumas barreiras íntimas relacionadas às suas identidades raciais e sexuais. São processos de autoaceitação e autodefinição complicados, mas Alberto mostra fluência irrepreensível ao encenar as interações entre seus protagonistas, impedindo que perdamos de vista a perspectiva particular da jornada de cada um deles, e ao mesmo tempo garantindo que acreditemos na atração mútua que nasce ali e revoluciona o mundo íntimo de ambos.
Em Os Segredos do Universo, está tudo na imagem: quando Aristóteles vê Dante pela primeira vez, ele é um espectro filtrado pela água da piscina, fraturado em mil pedacinhos, um mistério tão etéreo quanto irresistivelmente intrigante; quando ele chega à casa dos pais em frangalhos após um encontro violento com um bully (estou evitando spoilers mais significativos aqui), o Sol que se filtra pela tela da varanda reflete o ponto de ebulição no qual seus sentimentos se encontram, prestes a explodir para uma direção onde não há mais volta; quando uma declaração de amor pega Dante de surpresa, os olhos dele (ou melhor, do ator Reese Gonzalez) se enchem de um alívio que corre muito mais fundo do que qualquer paixão.
Muito dessa aposta no subentendido descansa nos ombros dos atores, é verdade, mas Os Segredos do Universo tira sorte grande com boa parte do seu elenco. No coração do filme, Gonzalez e Max Pelayo (que vive Aristóteles) funcionam bem em cena como opostos que se completam enquanto tentam, ambos, fugir de extremos caricatos. Pelayo evita o estereótipo do adolescente retraído e mal-humorado ao injetar uma gentileza particular ao modo de falar e se portar de Aristóteles, e um medo pulsante, desconfortável, à sua pose de machão. Já Gonzalez esbanja carisma quando poderia facilmente ter transformado Dante em um tótem vazio de coragem queer, um manic pixie dream gay que abre os olhos de Aristóteles para uma vida livre de medos e convenções.
O roteiro de Os Segredos do Universo ainda passa perto demais de fazer isso, diga-se de passagem, especialmente por “geladeirar” Dante, durante boa parte da trama, em uma locação distante. A fragilidade mais óbvia do filme está nessa fratura da história de amor entre os dois protagonistas, nessa insistência em elaborar tão dolorosamente os dilemas identitários de Aristóteles enquanto os de seu amado são largamente resolvidos fora da tela, sem grandes dramas ou repercussões. A diferença é flagrante, inclusive, nas oportunidades dadas às atrizes que interpretam as mães dos dois rapazes: Veronica Falcón é um triunfo de emoções sublimadas como a mãe de Aristóteles, enquanto Eva Longoria faz pouco mais do que uma caricatura de perua afetuosa como a mãe de Dante.
A sensação que fica é de uma história incompleta, por mais que o trabalho da diretora e de seus parceiros criativos a faça ser envolvente, de momento em momento. E essa negligência cobra seu preço no final do filme, quando todas as linhas dramáticas são desenroladas em prol de um romantismo teen jubilantemente brega, que talvez funcionasse melhor caso os conflitos que vieram antes tivessem abraçado os dois jovens amantes que vemos em tela, ao invés de só um deles.