Terceiro longa-metragem de ficção do capixaba Rodrigo de Oliveira se mostra obra poderosa, narrando a dor de pessoas com AIDS quando a doença era ainda pouco conhecida

Fonte: Aristeu Araújo – Plural Curitiba

Embora a AIDS tenha sido identificada em 1981, a doença passou anos envolta em mistério e tabu. Hoje vivemos uma pandemia e, por isso, fica um pouco mais fácil de entender o que fora o surgimento dos primeiros casos da síndrome de imunodeficiência adquirida, uma doença até então pouco conhecida, sem tratamento e mortal. Em 1983 já corria no Brasil a notícia dos primeiros casos da peste gay, como era pejorativamente chamada. “Os Primeiros Soldados”, terceiro longa-metragem de ficção do capixaba Rodrigo de Oliveira, se concentra nesse período, quando o horror frente à doença jogou as pessoas LGBTQI para guetos ainda mais invisíveis.

No filme, Suzano (Johnny Massaro) vem de visita passar o ano novo no Brasil, pois mora na França com seu namorado. Para tal, se hospeda com sua irmã e sobrinho, que vivem em Vitória, no Espírito Santo, sua cidade natal. É muito interessante como ao menos na família de Suzano, ser gay não é uma questão. Seus parentes não o julgam. Aliás, Muriel (Alex Bonin), o sobrinho, se espelha no tio que vem de fora, que às vezes se apresenta vestido de mulher, que é gay como ele, que é cosmopolita como ele quer ser. Há um diálogo muito bonito ainda na apresentação dos personagens, quando Muriel diz que não tem coragem de se vestir de mulher, mas não por achar aquilo errado, e sim porque não se acha bonito o suficiente. Oliveira, que também assina o roteiro, rapidamente nos faz entender que ali as questões e conflitos serão outros.

Mas estamos na década de 1980 e Vitória era uma cidade muito pequena. Se Suzano está em um ambiente que o acolhe, não é o que acontece com todos ao seu redor. Há um bar voltado ao público GLS (como se dizia na época), um lugar para se festejar com liberdade. Na festa de réveillon, ali nos primórdios daquele estabelecimento, estão outros dos principais personagens da história. Lá estão Rose (Renata Carvalho) e Humberto (Vitor Camilo). Rose é travesti e canta (dubla) nas noites de Vitória; Humberto é um videomaker que grava imagens da festa para um futuro documentário. Se Suzano vive em Paris e é bem resolvido com sua sexualidade, Rose e Humberto sofrem o ostracismo imposto pela província.

“Os Primeiros Soldados”

A estrutura de Os Primeiros Soldados é pouco ortodoxa. Na primeira parte, vemos o que há de mais público na história, justamente a passagem de Suzano pela casa da família; a festa de fim de ano; e tempos depois, o momento da piora, quando não havia mais como esconder que ele tinha AIDS. A outra metade do filme fica dedicada ao que havia de mais privado, porque Suzano, em segredo, se muda para uma chácara e se isola da sociedade, já que seus sintomas começavam a aparecer. É importante lembrar, nessa época não se tinha certeza nem sobre a forma de transmissão do HIV. Rose e Humberto se juntam a ele nessa espécie de asilo. Suzano é biólogo e, munido de seus conhecimentos, tenta estudar a doença que ele e seus amigos adquiriram. Contudo, grande parte dessa estada na chácara, nos é apresentada em forma documental. Humberto grava o dia a dia do grupo, os exames clínicos que fazem uns nos outros, a chegada dos remédios importados (mandados pelo namorado francês), a piora inexorável dos sintomas.

É fascinante como o dispositivo do falso documental surge com grande potência dentro do longa-metragem. É possível que até esse momento, paire no espectador algumas questões acerca das fragilidades intrínsecas ao filme (a pouca verba que não ajuda tanto na construção de um projeto de época; atuações às vezes rígidas demais). Contudo, as imagens em baixa resolução da câmera VHS de Humberto transformam tudo que poderia ser precário em verdade e potência, transformam o filme em uma obra poderosa e emocionante.

Os Primeiros Soldados é um filme que precisava ser feito em homenagem aos que foram os primeiros a caírem frente a epidemia de AIDS, mas sobretudo precisava ser feito para que as gerações mais novas entendam o quão aterrador e transformador aquilo tudo foi.

Assista ao Trailer:

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