Fonte: Francisco Carbone – Cenas de Cinema

A Paul Verhoeven, todos os caminhos para se chegar ao ponto escolhido são válidos e justos. Não é com sua nova produção, Benedetta, recém exibido no Festival de Cannes e no Mix Brasil, que sua face menos comportada dá as caras. O cineasta já octogenário não tem como pretensão chocar ou ousar deliberadamente, mas também não é do seu feitio entregar projetos paternalistas com o público. Sua principal ousadia talvez seja a falta de interesse em propor partidas e chegadas onde a falta de coragem para expor sua narrativa se façam presente. Essa fricção com o bom mocismo não é provocada por seu universo, ao contrário do que é apregoado; o desafio proposto pelo holandês é de ordem intelectual, é em espaço de reflexão social que seu cinema encontra porto.

Verhoeven não pretende atacar frontalmente a Igreja de maneira gratuita, sem arcar que isso é uma ideia para igualmente debater os sistemas de poder que seguem cerceando sociedades, doutrinando povos, gêneros e etnias, abolindo pela de decisão de poucos os direitos de muitos. A Igreja – e suas subdivisões que incluem demonstrações ilimitadas de cegueira causada por uma fé tresloucada – foi e até hoje é um instrumento utilizado com fins de dominação, independente do sentimento de conforto que verdadeiramente uma religião possa alcançar. O que o autor pretende, através de uma história verdadeira passada há séculos atrás, também é discutir o exercício do poder em microcosmos restritos, comparando-os com processos macro que tantas vezes o mundo testemunhou.

Acima de tudo, quem conhece o cineasta de Elle, Showgirls e ‘Instinto Selvagem’ sabe de sua frequente utilização de símbolo imagético com fins de repercutir a própria linguagem cinematográfica por si só, e as costuras que trançaram a arte por tantas vezes. Nunca deixando de acessar uma zona de escárnio que tão bem sabe utilizar, mais uma vez Verhoeven não tem medo de causar uma estranheza inicial em quem não esperaria que seu debate incluísse um humor tão corrosivo para alcançar seu lugar de especulação. Como a escancarar os limites do bom gosto, da moralidade e do que é bem quisto em sua padronagem, o autor chegou aos 83 anos ainda interessado na farsa que sustenta uma narrativa.

Como já feito outras vezes em sua filmografia, a encenação é um modo de compreender o universo à volta de seus personagens, e através deles seu próprio caos será deflagrado. Catherine Tramell e Nomi Malone, duas de suas protagonistas mais célebres, exerceram um papel em uma arena de marionetes também concebido pelas próprias, onde ora eram usadas, ora usavam terceiros. A irmã Benedetta vende uma ideia teatral de concepção da verdade, que não está em nenhum outro lugar que não no palco. Através desse jogo (o play do inglês; brincar, encenar) onde cada vez mais atores se envolvem e apresentam um número solo, o filme discute esses limites entre ser e pretender ser, qual a diferença entre ambos e a hora de começar e encerrar um espetáculo.

Ainda pouco visto, o que acontece aqui em Benedetta é a tradução dessa expressão como sendo uma metaforização do próprio cinema, das formas encontradas para traduzir nossa percepção ao caráter fílmico e artístico do próprio ato de encenar. O amor pela arte, pela composição que resulta em processo de criação; o que fundem suas personagens, irmanadas nessa sugestão, é o de uma profunda imersão nessa gênese, como se a interpretação fosse sua única saída, como se a arte fosse impossível de oferecer escapatória. Quanto maior é o desejo pela arte, pela ambígua construção de uma interpretação que privilegie o sonho e a imaginação, maiores são as forças que nos levam a manter a lógica de uma realidade paralela, inquebrável.

Dessa forma, talvez o seu novo filme seja, ironia das ironias, o que mais se aproxime de seu infame retrato sobre a podridão de Las Vegas, de 1996. Se em Showgirls o contraste entre corpos e neons traduzam uma vida de plástico moldada pelo espetáculo, radicalizando o artifício, aqui em Benedetta a encenação, dos corpos, da oralidade, do faz de conta, chega a uma nova categorização, quando o artifício é tão absoluto que é impossível viver longe dele. Mais uma vez, Paul Verhoeven traduz socialmente o cinismo e a violação de desejos genuínos em horror ao próprio corpo; na tentativa de impedir o prazer e a arte, mutilar a mulher, humilhar o feminino. É através desse horror e dessa discussão que o diretor choca, muito mais do que quando encena o amor dentro de um convento.

Um grande momento
O julgamento

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