Brett Morgen está interessado em como o artista se moveu no mundo, não para longe dele

Fonte: Caio Coletti – Omelete

“Tudo é uma besteira, e toda besteira é maravilhosa”. Proferida na voz de David Bowie logo nos primeiros minutos de Moonage Daydream, a frase continuou ecoando na minha cabeça durante as 2h15 seguintes do documentário biográfico experimental de Brett Morgen (Cobain: Montage of Heck). Conforme a vida de um dos maiores astros do rock e ícones pop do século XX passeava pela tela, em todas as suas indefectíveis metamorfoses, o que subiu para a superfície foi o senso de brincadeira irredutível que permeava tudo o que Bowie fazia com sua arte e sua celebridade.

Porque, veja, hoje em dia nós tendemos a levar David Bowie muito mais a sério do que o próprio David Bowie costumava se levar. Como todo grande artista, ele entendia o aspecto puramente lúdico e artificial da arte, como ela é essencialmente um jogo de significados e movimentos sentimentais entre o artista e o espectador – e como esse jogo pode ser delicioso, é claro. Ao mesmo tempo, poucos artistas se colocaram tanto em sua arte, amadureceram e mudaram tanto e tão à plena vista do público, foram tão representativos das épocas em que viveram, quanto Bowie.

Nas entrevistas selecionadas por Morgen, ele parece invariavelmente tímido, olhando os repórteres de baixo para cima, mas sempre com um sorriso maroto nos lábios, o mesmo que exibe de verso em verso nas apresentações ao vivo intercaladas no filme. Havia em Bowie uma necessidade enorme de se expressar, de ser compreendido, e essa necessidade guiava tanto a honestidade infalível de suas falas quanto o artifício absurdo de sua arte, uma contradição que Moonage Daydream parece entender muito bem. “Tudo é uma besteira, e toda bestreira é maravilhosa.”

O trabalho principal de Moonage Daydream não é fazer uma mitologia de Bowie, portanto. O estilo impressionista do documentário não está à serviço de uma adição à estatura do ícone, ou uma repetição daquele refrão que coloca o artista britânico como um “alienígena”, uma entidade de sabedoria superior, sempre deslocada nessa Terra. Este é um retrato do homem – melhor ainda, de um homem, cuja autenticidade inflexível o torna tão eternamente misterioso quanto plenamente reconhecível.

É curioso que Morgen adote, em seu filme, a mesma estratégia de Bowie durante a carreira: a da desmistificação através… bom, do místico. O diretor rejeita narrações em off e entrevistas dadas diretamente para a câmera, e até evita manchetes de jornal ou trechos de materiais escritos sobre Bowie no passado. Moonage Daydream não é um guia para os não iniciados: ele raramente cita títulos de álbuns, filmes ou projetos, pouco se prende em datas (a passagem das décadas é marcada mais pelo visual do biografado do que por qualquer coisa), e inclui poucos nomes de personalidades importantes na vida do cantor.

Ao invés disso, o que o diretor faz é puramente um recorte de imagens e sons da vida do artista. O ponto de partida é o estouro de Bowie em sua persona Ziggy Stardust, nos anos 1970, e a linha principal do filme nos leva até mais ou menos meados da década de 1990, com o artista estabelecido no alto clero do rock. Tanto a infância quanto a velhice de Bowie, portanto, viram meros materiais para serem entrecortados durante essa crônica central, com resultados variáveis. Aliás, o único grande pecado de Moonage Daydream é não dar ao trabalho de Bowie nos anos 2000 e 2010 a suma importância e vitalidade que ele teve.

É fácil perdoar o filme, no entanto, porque ele imbui da mesma curiosidade e honestidade que guiou as explorações do artista que retrata. Recorrendo a animações rudimentares muito eficientes e a excelentes remixes das faixas clássicas de Bowie (pelas mãos do produtor Tony Visconti), Moonage Daydream é bem sucedido no que importa: nos dar uma noção sólida, tão sólida quanto poderemos ter deste lado da tela, de como Bowie se movimentou pelo mundo e pelo tempo. Como ele foi o mundo e o tempo. Como todos nós somos.

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