Filme da volta da aposentadoria do diretor volta a tocar o autobiográfico

Fonte: Marcelo Hessel – Omelete

O Menino e a Garça é um raro filme de Hayao Miyazaki em que seu protagonista não é presenteado com uma aula de voo livre – alegoria recorrente nas animações do cineasta para simbolizar os saltos de maturação da infância para a puberdade. A tomada de consciência ambiental continua lá, servindo de baliza para unificar elementos fantásticos e oníricos aparentemente aleatórios. O voo em si, porém, agora parece carregar não só a liberdade mas também o perigo.

Depois de realizar Vidas ao Vento em 2013, Miyazaki parecia ter esgotado o teor autobiográfico dessas obsessões temáticas; sua família se mantivera nos anos da Segunda Guerra fabricando peças para os aviões da Marinha imperial, e naquele filme que marcava sua então prometida aposentadoria Miyazaki abordou diretamente a responsabilidade civil no esforço de guerra. O Menino e a Garça sugere que ainda há contas a acertar com esse passado.

A trama lembra Totoro e Chihiro porque começa com um luto e um retiro, cercado por natureza; depois de perder a mãe em um incêndio na cidade, o menino Mahito, de 12 anos, se muda para uma casa no campo quando seu pai recomeça a vida ao lado de outra mulher, a tia de Mahito. A orfandade traz desafios que ele não compreende, e a sua resposta é a beligerância: quando uma garça passa a provocar Mahito na casa, o menino decide matá-la.

Miyazaki consolidou sua carreira com histórias de heroínas infantis, mas desta vez escolhe um garoto como protagonista, e isso implica abordar o belicoso como uma extensão da masculinidade. O fato de o pai de Mahito construir peças de aviões para a guerra é tão importante, nesse sentido, quanto as promessas que ele faz de reagir às agressões que Mahito estaria sofrendo de outros garotos. O consagrado pacifismo ambientalista de Miyazaki parte, em O Menino e a Garça, de um registro doméstico; a violência está no desarranjo do mundo mas talvez esteja antes nos pequenos gestos, e é preciso defini-la e entendê-la.

O que também está nos pequenos gestos são o afeto, a aproximação, o reconhecimento. Este novo filme do Estúdio Ghibli renova a fé dos seus realizadores na animação tradicional 2D como o meio artesanal de expressar melhor esse gestual. O vento carrega o fogo, move violentamente as fitas que sufocam Mahito, há toda uma ameaça implícita nesse movimento absurdo e raivoso da natureza e do mundo, mas em contraponto o pequeno gesto sutil e cuidadoso – de uma mão aplicando um curativo, de um carinho no rosto, de um braço esticado buscando outro – fura o turbilhão e persevera.

Há muitas sínteses que os filmes de Hayao Miyazaki permitem depreender, quando refazem, de forma circular, variações sobre a aventura reveladora de formação juvenil. Uma delas é que Miyazaki escolheu o fantástico (e o caos de elementos visuais que o gênero permite, tanto quando envereda pelo horror quanto pelo lírico) porque assim pode manter o gesto do toque humano como uma tábua de salvação. Filme a filme, seus personagens se perdem em sonhos cheios de movimento, voos, quedas, corridas, apartes, e o que os salva é a busca por uma alteridade, expressa numa mão amiga.

A novidade em O Menino e a Garça é que o turbilhão se parece mais com um efeito manada insano – metaforizado a partir da memória da guerra – do que apenas com a fúria do meio ambiente. Às vezes isso surge aos poucos, como nos gestos de força do pai, mas logo se espalha e se coletiviza. O filme antropomorfiza os kamikazes e os combatentes japoneses na massa de pássaros que se amontoam em quadro até tapar a nossa visão. Muito antes do rei dos periquitos surgir em cena como uma caricatura que lembraria o imperador do Japão, um dos pelicanos solta suas últimas palavras para Mahito a título de cautionary tale: “Este mar está amaldiçoado”. A coletividade convida a violência quando se impregna dessa beligerância dos homens, e o filme marca de forma melancólica que há uma porção de responsabilidade para o país carregar nessa história.

Ao ensinar seus personagens a voar, Miyazaki está curando feridas. O incêndio que abre O Menino e a Garça se parece muito com o fogo dos bombardeiros americanos em Kobe retratado num dos primeiros longas do Ghibli, Túmulo dos Vagalumes (1988). Os aviões trazem sempre consigo a memória da infâmia da guerra, mas, ao longo dos anos, colocar essas crianças para voar sem precisar da máquina talvez fosse para o cineasta uma forma de purgação. Mahito não aprende a voar, mas no seu caso firmar os pés no chão durante a revoada não deixa de ser uma vitória.

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