Filme acerta na escala quando assume que a experiência humana é naturalmente incompleta

Fonte: Marcelo Hessel – Omelete

Um dos elementos que tornam Shin Godzilla (2016) tão brilhante é que o filme não tenta dar aos personagens humanos mais autoridade e importância do que eles conseguem lidar, diante dos monstros gigantes, e inclusive pega isso como base para falar criticamente sobre burocracia e o ridículo da liturgia política – um filme sobre homens pequenos numa estrutura de grandeza ilusória, apequenados na prática por um evento colossal.

No geral, os filmes japoneses de kaiju sabem bem que o astro principal sempre vai ser o monstro em si – e que o famoso “drama humano” precisa se enquadrar nessa escala desproporcional de protagonismo. É por isso, entre outras razões, que os filmes americanos de Godzilla frequentemente patinam no registro, sem saber como transformar o lagarto gigante numa criatura mais ou menos empática (o que a tornaria “digna” de protagonismo), enquanto tentam conservar o poder de agência dos personagens humanos dentro do filme-desastre.

Não vai ser a essa altura do campeonato que Hollywood vai se desfazer de seus manuais de roteiro – que rezam sempre pelo arco de personagem, pelas jornadas individuais – para dar conta de um ou dois kaijus. Mas os filmes tentam, e Godzilla vs Kong é o mais novo passo nesse permanente aprendizado de adaptação. O fato de dar a King Kong uma certa capacidade de se comunicar (o que já escancara um favoritismo no embate contra Godzilla) vem dessa necessidade de transformar os monstros em tipos humanizados.

Godzilla vs Kong se encontra numa encruzilhada meio incerta de registros, e não só na tentativa de humanizar os montros. De um lado, o longa de Adam Wingard reconhece a descartabilidade e a superficialidade dos personagens humanos que somos obrigados a acompanhar. Do outro, porém, o roteiro de Eric Pearson e Max Borenstein insiste em partir de uma jornada dramática individualizada para criar esses personagens, o que por fim vai soar mal acomodado no filme. Um exemplo é o personagem de Brian Tyree Henry, o conspiracionista do podcast: é um personagem essencialmente criado para encontrar e explicar coisas de um ponto de vista farsesco que desarme a seriedade da exposição, mas em certo momento o roteiro encaixa que Henry perdeu a esposa e seu propósito, portanto, se torna impregnado de dignidade e justiça.

Essa obsessão com o que é digno e justo – o que autorizaria esses coadjuvantes a pleitear um lugar de protagonismo – é um dos vícios de manual de roteiro que a direção de Wingard não consegue remediar. Godzilla vs Kong pedia que ele fizesse uma operação de partir do quase-paródico para encontrar uma verdade justamente ali. Se bobear, talvez ele tenha sido contratado para esse projeto de encomenda justamente porque fez essa operação em Death Note, em 2017. É possível discutir de muitas formas a adaptação do anime feita por Wingard para a Netflix, mas parece bem evidente que o diretor cria algo seu, proprietário e autoral, a partir de uma operação muito incisiva de despir os personagens de uma verdade aparente, operação essa que então encontra outra dimensão para esses personagens, agora “nus” diante de nós porque sua verdade anterior era uma só uma casca apresentável de dignidade.

A verdade de um personagem nunca precisa ser bonita – ela só precisa parecer verdadeira mesmo. O que temos em Godzilla vs Kong é uma variedade de personagens funcionais, colocados em situações excepcionais pelo mais completo acaso, e que ainda assim se comportam em cena como se esse acaso fosse na verdade uma manifestação do destino, um fim de jornada que sempre esteve à sua espera – um destino que os torne protagonistas de sua história e do filme. É evidentemente um descompasso entre expectativa e realidade, e Godzilla vs Kong não consegue transformar essa situação em uma oportunidade narrativa, que concilie o irônico e o não-irônico. Aqui, a Verdade dos personagens só é verdadeira para os próprios personagens.

O sensorial é rei

Mas há a exceção de Jia, a criança surda interpretada por Kaylee Hottle. Ela é uma sobrevivente do povo iwi da Ilha da Caveira, o que logo de cara já a apresenta a nós como uma figura alienígena, do ponto de vista cultural – ou seja, se vamos confiar em Jia para entrar com ela no filme, será uma experiência acima de tudo amoral, porque afinal ela é uma criança e os valores de Jia (independente de quais forem) não nos dizem respeito. Em outras palavras, Jia chega a nós como uma intérprete pura, imaculada, o que por si só já a gabarita a nos transportar pelo filme sem o peso do julgamento prévio do que é digno ou justo.

E há o elemento absolutamente central da deficiência física. A partir do momento em que descobrimos que Jia é surda, isso passa a determinar a experiência sensorial limitada que teremos com os próprios kaijus. Gareth Edwards já sabia, quando fez o melhor filme americano de Godzilla a partir dos ensinamentos de Steven Spielberg em Jurassic Park, que é importante limitar nosso campo de visão para nos transmitir idealmente a experiência de estar diante de uma criatura colossal. O que Wingard faz aqui – depois de usar Jia como senha, no começo do filme – é estender as limitações sensoriais da visão para a audição.

Ora, no fundo essa é a grande função de personagens humanos em um filme de Godzilla, que há 70 anos na Toho esmaga cenários sem figurinhas humanas porque a escala da ação é absolutamente desproporcional e não faz diferença, na altura dos olhos de um kaiju, se a cidade é feita de concreto ou de papelão. Precisamos de personagens humanos essencialmente para nos garantir um senso de escala que percebamos verdadeiro para nós. É o que Jia faz, e como ela é surda e sua experiência se define pelas limitações, essa incompletude é estendida ao espectador. O filme é um grande espetáculo sensorial mas sempre haverá um pequeno mistério – aquilo que não conseguimos ver, ouvir ou tocar por inteiro.

Ou seja, nessas horas percebe-se como o incompleto é importante, porque afinal o espectador precisa, para se engajar com o filme, ter algo que ele completará por conta própria, com sua imaginação, com seus valores, com suas vivências pessoais. Quando o roteiro encerra essa discussão entregando meia-dúzia de personagens de Verdade fechada e incontestável, a troca com o espectador fica unilateral. É uma troca determinada pela passividade, como uma entrega de fan service. Já quando convida o espectador a compartilhar uma vulnerabilidade – ainda que seja só o ponto de vista de uma criança – há uma lacuna aí a ser preenchida em conjunto, na imersão, e a coisa começa a ficar um pouco mais interessante.

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