Diretor não se limita à reverência e aborda o remake com impulso de profanação

Fonte: Marcelo Hessel – Omelete

O Beco do Pesadelo se passa nos anos da Segunda Guerra Mundial e acompanha um homem de poucas palavras e ambição efervescente (Bradley Cooper) que aprende no circo os truques de ser um bom mentalista – dons que ele então coloca em prática enganando a elite de Nova York em apresentações de mediunidade. Assim como no romance de 1946 e no longa noir de 1947 que agora Guillermo Del Toro refilma, essa ambição leva a uma intriga de cobiça e ressentimento com os contornos clássicos de uma história de danação.

A informação sobre a Segunda Guerra parece acessória mas não é. Adicionada no roteiro adaptado por Del Toro e Kim Morgan, ela não se presta apenas a situar o remake no mesmo período da trama original. Mencionar a guerra – e por extensão evocar os horrores do Holocausto – é uma maneira de prestar uma homenagem ao próprio noir e escolher para si, dentre as tantas características que definem esse gênero, aquela que talvez seja a mais pungente: o filme noir foi a maneira mais aguda que a antiga Hollywood encontrou para dar conta do horror da Segunda Guerra.

Historicamente, inclusive, o noir se estabelece de vez como gênero – marcado no imaginário popular, atrativo para os maiores atores de Hollywood e vanguardista em linguagem e temas – assim que a guerra termina. Entre 1945 e 1950 saíram os noir mais atormentados e mais ousados narrativamente, abraçando os perfis psicologizantes que o cinema moderno começara a firmar nos anos 1940, validados na então crescente popularidade da psicanálise. Se o flashback se tornou com os anos uma ferramenta habitual do noir, para dar corpo a traumas do passado (o clássico Fuga do Passado, quase todo contado em flashback, saiu no mesmo ano do Nightmare Alley original), isso se deve em parte à memória inominável do Holocausto.

Embora os flashbacks de O Beco do Pesadelo sejam bem pontuais, usados para manter um certo mistério até o fim, no filme de Del Toro eles terminam delimitando a jornada de Stan Carlisle, o personagem de Bradley Cooper, em termos psicológicos: do início ao desfecho, este será um protagonista definido por sua mal resolvida relação com o passado, trauma que obviamente não passa despercebido pela psicanalista (Cate Blanchett) que se torna a parceira de golpes de Stan. No filme de 1947, Stan se submete à terapia de muito bom grado, inclusive ele sai da sessão aliviado e disposto a pagar por ela, e não há o trauma paternal a assombrá-lo com flashbacks. No remake, a terapia se assemelha a uma tortura. Ou seja, há toda uma preocupação no filme de inflacionar e tornar mais vistosos esses elementos que no passado marcavam o noir de forma frequentemente velada: o perfil psicológico ligado ao trauma, o horror da memória.

O perigo, então, é que isso tornasse O Beco do Pesadelo um filme literal demais. Quando Cooper entra em cena pela primeira vez, debaixo de chuva, com a aba do chapéu cobrindo seus olhos e sem pronunciar uma única palavra por longos minutos, a impressão que fica é que Del Toro – assim como todo mundo – amava ver Humphrey Bogart ou Robert Mitchum em cena e prestará todas as suas reverências agora que decidiu realizar um suspense noir. Felizmente, o cineasta aprendeu suas lições com A Colina Escarlate (2015), um filme de horror gótico que, por excesso de devoção, não teve condições de abrir o gênero e “profaná-lo” com novas ideias e uma execução de fato vigorosa.

Pois ao aproximar mais O Beco do Pesadelo do horror – tanto o horror metafórico da memória quanto o horror físico, manifesto – Del Toro dá o passo fundamental para profanar o noir e injetar no gênero uma energia nova, que transcende o aspecto literal. É como se o diretor tivesse vislumbrado a possibilidade de fazer um noir bem reverente, cinefílico, e decidido dobrar essa aposta com um registro maneirista e por vezes metalinguístico (as cenas no consultório da terapeuta, com o gravador sempre em evidência, dispositivo que nos relembra da mecanicidade dessa realidade encenada e artificial, parecem saídas de um filme de Brian De Palma). Ironicamente, e não por acaso, O Beco do Pesadelo tem momentos de horror gótico que são mais eficientes que aqueles de A Colina Escarlate.

O Beco do Pesadelo totaliza 150 minutos e boa parte da duração se ocupa de situar o universo do circo (que no original era resolvido em pouco mais de 40 minutos) antes da trama de fato começar. Isso pode ser interpretado como um capricho de Del Toro e um aceno ao mundo da fabulação e dos párias sociais que desde sempre cativam seu cinema. Se não fosse o longo preâmbulo circense em O Beco do Pesadelo, porém, não teríamos tão bem definidos quais são os padrões da deterioração, da exploração, do vício e do dinheiro que definem a experiência humana. Podemos nos encantar com o circo – e igualmente acreditar na perspectiva de que o lúdico do circo ajude a superar toda essa miséria da experiência humana – mas uma coisa não necessariamente nega a outra.

O que temos então aqui são os dois lados de Del Toro coexistindo e disputando espaço num tipo de duelo criativo: o autor reverente, cinefílico, para quem a magia do fabular talvez se baste, e o Del Toro da transmutação, da ruína física, o cineasta que muitas vezes flertou com o horror corporal mas que nunca fez disso em seus filmes um propósito isolado, macabro, porque afinal o traço que prevalece na sua obra é o do maravilhamento. Ao ceder espaço para o pessimismo – que afinal de contas é outro elemento fundamental no noir – Guillermo Del Toro se permite aqui ser um pouco mais crítico, inclusive consigo mesmo, e isso se converte em O Beco do Pesadelo numa força inconfundível de criação e reinvenção.

Publicações recentes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  +  87  =  90