Fonte: Bruno Carmelo

À primeira vista, Hava, Maryam, Ayesha (2019) constitui um drama tradicional, de estrutura simplíssima. Somos apresentados a Hava (Arezoo Ariapoor), uma mulher grávida vivendo na casa dos sogros. O marido lhe dirige ordens esporádicas a respeito de produtos a comprar e pratos a cozinhar. Não existe carinho na vida desta personagem maltratada pelo sogro e desprezada pelo esposo. O episódio se desenvolve com as ferramentas tradicionais do realismo social: luz natural, sons ambientes, planos longos, enquadramentos fixos ou movendo-se junto à protagonista, colados ao seu corpo e rosto. O teor do segmento alterna entre a lamentação por uma vida objetificante (a única felicidade de Hava consiste em conversar com o bebê na barriga) e a denúncia da condição feminina no Afeganistão contemporâneo. A abertura nos prepara para um drama com D maiúsculo, ou seja, focado nas mortes, abandonos e demais provações. A diretora Sahraa Karimi acena a um mosaico pedagógico de códigos sociais no país, voltados ao público estrangeiro – afinal, há poucas salas de cinema no Afeganistão, com ingressos de valor inacessível. Este seria um caso de denúncia feita para exportação, algo que carregaria valor em si, visto que os dilemas do Oriente Médio são subrepresentados nos veículos de informação em massa.

Aos poucos, a narrativa se torna mais complexa. O conto dedicado a Hava se encerra de maneira aberta, nem otimista, nem pessimista. Um simples corte da montagem substitui a protagonista por Maryam (Fereshta Afshar), abrindo mão de qualquer indicação de capítulos ou algum longo black marcando o encerramento. Em outras palavras, a cineasta evita a quebra da narrativa, inserindo as protagonistas no mesmo espaço e tempo. Além disso, a segunda mulher ilustra uma classe social e um dilema radicalmente distintos do anterior, fugindo desta vez à condição de vítima. Maryam é forte, destemida, disposta a conseguir o divórcio e o aborto, enquanto refuta os flertes do patrão. Ao invés de demonstrar piedade, o discurso encoraja e comprova a força de sua heroína. Percebe-se a preocupação de diversidade por parte da diretora, cobrindo três classes sociais, três faixas de idade e três conflitos independentes. Em comum, elas são condicionadas socialmente por sua relação com homens: são mães, esposas, noivas, filhas, noras. Karimi sustenta um corajoso posicionamento feminista, ainda que embutido num drama de personagens de aparência trivial. Ela não estima que estes casos sejam excepcionais, mais fortes ou claros que os demais: a diretora joga luz em figuras que poderiam, em sua opinião, representar a média de mulheres adultas no país.

O realismo social do trecho de abertura cede espaço ao melodrama na segunda metade (curiosamente semelhante à narrativa de A Voz Humana, 2020, de Pedro Almodóvar). Já o terço final, o mais potente do conjunto, obtém uma espécie de equilíbrio entre o drama de observação e o drama sentimental. A narrativa articula um processo de tese (mulheres são vítimas), antítese (mulheres são combatentes) e síntese (elas precisam ultrapassar estes campos, sendo compreendidas dentro do contexto social dinâmico onde se inserem). A chegada de Ayesha (Hasiba Ebrahimi) aprofunda esta jornada, permitindo pela primeira vez que as heroínas se encontrem, se ajudem e adotem atitudes independentes dos maridos e noivos. Fugindo ao fatalismo inicial, a autora passa a enxergar alternativas discretas, porém marcantes de autonomia feminina. A reunião simbólica entre uma esposa pobre, uma divorciada rica e uma garota de classe média permite deduzir que todas sofrem alguma forma de pressão de gênero. Nesta exposição quase acadêmica, parte-se das diferenças rumo a uma percepção daquilo que todas tenham em comum.

Em contrapartida, a fragmentação desta enxuta narrativa em três partes faz com que o longa-metragem limite os percursos individuais. A trajetória de Maryam se torna refém de alguns diálogos explicativos quando confronta o ex-marido ao telefone, oferecendo informações de que ambos dispõem, apenas para esclarecer ao espectador: “Você me traiu! Eu te peguei na cama com outra!”; já Ayesha adquire uma frágil construção do passado e do relacionamento com o rapaz por quem é apaixonada. O que ela pensa sobre o primo com quem é obrigada a se casar? Que sentimentos possui em relação ao casamento em geral? O roteiro ignora estas respostas, obrigando a montagem a saltar logo para o necessário. Restam instantes preciosos de contemplação e poesia (Ayesha lavando o rosto com uma esponja, Hava preparando o almoço sozinha), porém incapazes de mergulhar na psicologia do trio. As mulheres se transformam em exemplos de seus problemas, existindo no filme por causa deles. Os símbolos clássicos do gato e o pássaro, ou ainda da gaiola e a ratoeira, se revelam tão eficazes quanto evidentes, ao passo que diálogos do tipo “Uma casa sem um homem é como uma panela sem tampa” ilustram o machismo ao limite da obviedade.

Calmamente, a diretora permite que estas histórias culminem numa conclusão de impacto considerável, quando um novo tema une as protagonistas. De certa forma, o roteiro inteiro nos conduzia até este trecho de poucos segundos, repleto de significados, e abrindo um mundo de perspectivas (positivas e negativas) às personagens. As qualidades de Hava, Maryam, Ayesha devem ser percebidas para além de um paternalismo ocidental condescendente (“Como é bom termos obras afegãs dirigidas por mulheres”, “Como deve ser dura a vida por lá”), privilegiando questões de mise en scène e linguagem cinematográfica. A diretora efetua uma fábula bem costurada, dotada de um discurso menos ingênuo do que aparenta a princípio. O drama carrega um trabalho tão eficaz quanto discreto de iluminação, enquadramentos e montagem, sem se exibir nem se esconder por trás da nobreza do tema. As três atrizes oferecem composições coesas, onde nenhuma se sobressai às demais. Em paralelo, o filme preserva o ponto de vista feminino da primeira à última cena – ou seja, esta não é apenas uma obra sobre mulheres, mas com elas. Karimi se expressa a partir de um lugar de evidente familiaridade, evitando o senso de espetáculo e o fetiche da miséria. Neste sentido, fornece um pequeno filme naturalista, direcionando suas críticas a um sistema amplo ao invés de apontar dedos ao comportamento de indivíduos isolados.

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