Reencontro de Luca Guadagnino e Timothée Chalamet opera na chave do descompromisso

Fonte: Marcelo Hessel – Omelete

A melhor parte de Até os Ossos (Bones and All) é o primeiro ato, quando somos apresentados à vida de cidade pequena da protagonista Maren (Taylor Russell), em meio a elipses e tempos fracos, para sugerir que a rotina anestesiada dessa jovem de 18 anos está anestesiando também esse princípio morno de filme. Basta um instante de desatenção, porém, para que as pulsões típicas do fim da adolescência se convertam, na chave de horror proposta pelo filme, em uma narrativa de canibalismo, pavor e sobrevivência.

Conciliar as duas coisas – a jornada de amadurecimento juvenil e a premissa fantástica de cores apocalípticas – é o principal chamariz do material, que o diretor Luca Guadagnino adapta do romance homônimo de 2015 escrito por Camille DeAngelis. É também o principal desafio do filme, que em tese marca um cruzamento seguro de dois trajetos já desenhados recentemente por Guadagnino, o do horror visceral (como em Suspiria) com o drama de pertencimento teen (como em We Are Who We Are).

O fato de recorrer a Timothée Chalamet como coprotagonista, no papel de um jovem que se torna o companheiro de Maren à medida em que Até os Ossos se assenta como road movie pelos estados agrários dos EUA, obviamente evoca também Me Chame pelo Seu Nome (2017), ainda que Chalamet surja em cena caracterizado como white trash americano a título de desconstrução da sua imagem. Esse conjunto de experiências já testadas de Guadagnino oferece um contexto familiar para que Até os Ossos chegue sem alienar ninguém, a despeito da sua premissa gore.

Talvez fosse o caso, porém, de manter até o fim aquela subversão de expectativas do primeiro ato. O que acontece com Até os Ossos a partir do momento em que a exposição se desenrola (ou seja, quando Maren começa a ouvir na fita K7 o relato narrado por seu pai, e o filme se torna uma longa busca por preencher lacunas dessa exposição) é que as coisas simplesmente vão se acomodando em si, confortavelmente. O filme primeiro nos convida a tentar conciliar formatos narrativos com base no choque e na disrupção (a cena em que Maren chupa o dedo lá no início é realmente muito boa) e depois escolhe tirar o corpo dessa disputa. É como se dissesse que tem pra todo mundo; ninguém precisa brigar pela autoria do registro nem por um ponto de vista discursivo.

O resultado é que Até os Ossos termina por diluir, anestesiado, as muitas referências que já compunham desde o início o corpo do material, ao invés de juntar essas referências para gerar, no atrito, algo minimamente particular. O road movie de formação é igual a uns dois terços do que o cinema indie americano produz nos laboratórios de roteiro de Sundance. O amor teen de perdição, da mesma forma, não vai soar inédito para ninguém que tenha lido algum dos livros infantojuvenis sobre namorados adoecidos (a trama se passa nos anos 1980 mas seu clima de desesperança e melancolia é todo Geração Z). O contexto de ruína da civilização também lembra outras narrativas parecidas de realismo fantástico, como A Estrada (2009).

Já que estamos listando as referências, vale arrematar com uma comparação com Corrente do Mal, que parece ser o paradigma dessa conciliação crítica de registros que Guadagnino esboça aqui sem vigor. No longa de 2014, a trama formulaica de horror slasher (há uma entidade matando jovens em série) não tenta dividir sem atrito o mesmo lugar do drama de contemplação ou da crônica geracional; o espaço da narrativa em Corrente do Mal é um espaço a ser batalhado mortalmente, e é nisso que se gera a energia que move o filme.

Já Até os Ossos é o caso raro de um filme bem sanguinolento em que, paradoxalmente, não há batalhas mortais. Obviamente, os protagonistas lutam pela sobrevivência, mas parece que o fazem mais por uma conveniência de roteiro do que para defender sua existência (enquanto personagens envolvidos numa dramaturgia). Sempre que Até os Ossos se lembra de voltar à fórmula do horror (há uma raça de canibais neste mundo e eles oferecem perigo uns aos outros), na figura do vilão do filme, isso soa mais como um inconveniente ou uma distração do que como algo essencial à narrativa. No mais, sob o olhar da Geração Z, os Boomers exemplificados nessa figura do vilão talvez sejam só isso mesmo, velhos chatos com seus monólogos sem sentido, atrapalhando a vista do belo pôr-do-Sol do fim do mundo.

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