Crítica | Inautêntico, maniqueísta e nojento, A Baleia é tudo que seu protagonista não é
Darren Aronofsky não poderia ligar menos para a humanidade de seus personagens
Fonte: Caio Coletti – Omelete
Brendan Fraser é um excelente ator – e sempre foi, diga-se de passagem. Sua destilação estúpida de Tarzan em George, o Rei da Floresta (1997), sua afetuosa zombaria do charme do aventureiro hollywoodiano em A Múmia (1999), seu carisma explosivo e ameaçador na pele do narrador caubói da série Trust (2018)… Todas essas e muitas outras performances podem (e devem!) ser citadas como evidências do talento de Fraser no mesmo fôlego que A Baleia, que finalmente lhe rendeu uma indicação ao Oscar e consolida o seu retorno à crista da onda de Hollywood após anos de ostracismo.
Sendo o excelente ator que é, portanto, Fraser entrega tudo o que pode para o Charlie de A Baleia. Mesmo enterrado debaixo de próteses, ele se esforça valentemente para expressar as tragédias e triunfos do personagem, para emprestar alguma verdade à sua crença inabalável na bondade humana, para tentar nos convencer de que o otimismo sobrenatural de Charlie é inato, e não calculado pelo filme. Enfim, o que ele quer é transformar em personagem de verdade, em ser humano palpável, a criação cínica de um grupo de artistas que cooptou uma experiência vívida e real a fim de torná-la uma “história inspiradora” para um público quem nem de longe a compartilha.
Fraser é excelente, mas não onipotente, e no fim das contas sua bela performance não consegue esconder a feiúra de A Baleia como peça dramática e elaboração cinematográfica. Em roteiro adaptado por Samuel D. Hunter de sua própria peça, acompanhamos Charlie durante sua última semana de vida – algo telegrafado para o espectador em um dos primeiros diálogos do filme -, enquanto se esforça para restabelecer contato com a filha, Ellie (Sadie Sink). A tentativa de redenção é dificultada pelo fato de que Charlie, ao se descobrir gay e se apaixonar por outro homem, abandonou Ellie e sua ex-mulher quando a menina tinha oito anos.
Textualmente, Hunter não opera grandes transformações em sua criação, que segue espacialmente contida e exageradamente verbal como é necessidade de qualquer peça de teatro nos moldes tradicionais. Fica nas mãos do diretor Darren Aronofsky, portanto, a responsabilidade de nos convencer de que A Baleia se encaixa bem nos cinemas, o que ele tenta fazer através de explorações visuais bem previsíveis para quem conhece a carreira do diretor. De certa forma, este é o filme que melhor destila a “estética Aronofsky”, devendo muito às convenções do drama indie (aspect ratio acadêmico – aquele que faz o filme ficar “preso” em uma caixa quase quadrada -, fotografia granulada) e às convenções do horror (flashes de luz em alto contraste, desconforto psicológico traduzido no corpo).
O fato de A Baleia lembrar estilisticamente tanto O Lutador e Réquiem Para um Sonho quanto Cisne Negro e Mãe!, no entanto, não faz com que ele pareça a culminação das obsessões e do estilo de um artista. Pelo contrário, esse amálgama de ideias recorrentes na obra de Aronofsky dá ao espectador a sensação de que esta é uma história dobrada forçosamente à vontade do seu diretor, que raramente sai do próprio caminho para servir às ideias genuínas que estão contidas na narrativa. Os takes repetidos que focam na porta do apartamento de Charlie são um raro desvio da norma – na frieza sepulcral que aplica neles, Aronofsky adiciona texto a A Baleia, ao invés de obrigar o texto que já está ali a servi-lo em sua busca egoísta por realização estética (e, talvez, reconhecimento acadêmico).
Essa inautenticidade do empreendimento artístico do diretor é a falha elemental de A Baleia, que se infiltra pelo filme mesmo diante de trabalhos bem intencionados contidos nele. Se Fraser é o trunfo dramático previsível do longa, por exemplo, Hong Chau surge como o seu inesperado centro nervoso – na pele de Liz, amiga e enfermeira de Charlie, ela equilibra a necessária expansividade do colega de cena com uma performance tensa, precisamente localizada na agonia entre a culpa e a expiação, o luto e o alívio. Há algo de verdadeiro e difícil aqui, na forma como Liz caminha a linha turva entre facilitadora da tragédia de seu amigo e sua única verdadeira salvação, e Chau mina esta verdade como a grande atriz que é.
Não à toa, descobrir a razão pela qual Liz permanece ao lado de Charlie me comoveu muito mais do que qualquer outra coisa em A Baleia, o que não deixa de sublinhar o quão profundamente cínico e equivocado o filme é. Esta é uma história que nos diz que Charlie é vítima, inspiração e monstro, tudo ao mesmo tempo – canonizando-o como exemplo de humanidade e interação compassiva ao mesmo tempo que transforma o seu corpo em um espetáculo de horror escatológico como não visto há décadas fora de um longa dirigido por David Cronenberg (ou, mais recentemente, por seu filho Brandon).
Além de nunca se integrarem em um estudo de personagem honesto – o que é um problema em um filme que se vende exatamente dessa forma -, o denominador comum entre esses lados de Charlie é que eles estão aqui para o (presumido, suposto) benefício do público, que muitas vezes se confunde com os próprios cineastas nesse caso. Por todas as virtudes de Brendan Fraser como ator, sua declaração de que o papel lhe ensinou que pessoas obesas são dotadas de “incrível coragem” define o maniqueísmo burro de A Baleia como nenhuma outra.
Este é um filme feito para que possamos olhar para outro ser humano, ou um simulacro dele, e (em meio a um quase-vômito ou outro) dizer: “Se até ele pode ter esperança, o que me impede de ter?”. Isso não é empatia, claro – instrumentalizar o outro para repensar nossa autoestima não humaniza ninguém, e não provoca nenhuma transformação concreta para além do nosso próprio umbigo.