Cineasta encara o tédio técnico da guerra no seu épico histórico mais conflituoso

Fonte: Marcelo Hessel – Omelete

À medida em que a influência cultural dos EUA começa a diminuir num mundo cujo eixo econômico pende para a China, é curioso notar como a incontestável hegemonia militar do país se esvazia de sentido ideológico. Alguns filmes lidam com essa realidade há alguns anos – já faz uma década que Kathryn Bigelow realizou A Hora mais Escura (2012) – e, nesse novo contexto, tratam o militarismo americano como uma questão essencialmente tecnocrática. É a guerra infinita travada no piloto automático.

Napoleão Bonaparte (1769-1821) continua sendo uma figura críptica que impede consensos entre historiadores, mas, a julgar pelo filme dirigido por Ridley Scott, enxergar no imperador francês uma expressão da moderna tecnocracia não seria um absurdo. É com absoluto tédio que o Napoleão de Joaquin Phoenix lidera seu exército em massacres contra as coalizões de Itália, Grã-Bretanha, Áustria e Rússia. As Guerras Napoleônicas consumaram o talento do seu líder para a logística e a estratégia de combate, mas o triunfalismo decorrente disso é diminuído minuto a minuto em tela, à medida em que os gestos de “avante” e “fogo” de Phoenix vão ficando mais e mais discretos e desinteressados.

É chocante comparar o astro de Napoleão com o vilão que Phoenix havia interpretado para Scott em Gladiador (2000), com fúria e fogo nos olhos. Um quarto de século depois, resta em Phoenix apenas uma presença de cena imutável, como se interpretar o imperador fosse antes um direito seu (mais um automatismo entre os demais) do que um esforço necessariamente ou algo a ser conquistado. Napoleão é resumido aos seus feitos, o que no filme surte o efeito de brutalizar o personagem; de fato, Scott faz aqui um épico cuja nota mais marcante nas cenas de guerra é o sangue com que se encena, sem pudores, de guilhotinadas a esquartejamentos.

Por um lado, ao minimizar as eventuais razões de ser da sua megalomania, Scott está se recusando a didatizar o filme e diminuir seu biografado a um único perfil (seja o egocentrismo, seja o patriotismo). Napoleão preserva apenas o essencial da romantização do relato, ou seja, o contexto geopolítico e o fiapo de uma premissa edipiana, cujo elo de intimidade e humanidade é representado pela figura da esposa Joséphine (Vanessa Kirby, muito segura do que consegue fazer num papel de dois ou três tons de personalidade). Como um bom britânico, dos julgamentos que reserva ao imperador francês, Ridley Scott os concentra nos excessos de devassidão, e este filme se diferencia dos demais épicos de Scott pelo flerte constante com a sátira.

Essa sátira passa por uma infeliz realidade (não apenas do cinema americano mas do pensamento ocidental como um todo) que é o impulso anti-política. Quando encena os lances de bastidores que levaram da deposição de Robespierre até a coroação de Napoleão, Scott sobe o volume da pantomima – num movimento que obviamente desagradou os franceses, mas que Phoenix performa em cena com visível galhardia. A política é diminuída a uma necessidade das ocasiões, e a revolução se resume à turba sedenta, enquanto o verdadeiro exercício de poder é feito em batalha, por mais que toda a guerra em si pareça no filme uma obrigatoriedade de roteiro.

É sobre essa dinâmica intermitente de atração e repulsa, de deslumbramento com o triunfo da batalha e o seu decorrente esvaziamento de sentido, que Napoleão se sustenta ao longo de duas horas e meia. Ridley Scott não tira disso uma faísca criativa que consiga elevar seu filme para além dos caprichos do épico histórico, mas de qualquer forma é instigante acompanhar o veterano cineasta lidar com a constatação da sua própria vocação tecnocrática, e ver como ele reage a isso. Deslumbrar-se com as possibilidades das cenas campais com milhares de figurantes a cavalo não parece interessar mais a Scott, a essa altura da sua carreira e da realidade esvaziada da guerra contemporânea. Resta o ofício que o diretor faz de olhos fechados, e a morbidez decorrente disso em Napoleão, fruto sem dúvida de um tédio da repetição, talvez seja o que o filme tem de melhor a oferecer.

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1 Comentário

  1. Ana Claudia 12 de dezembro de 2023

    Gostaria de deixar minha opinião sobre o filme Napoleão. O filme é maravilhoso! Produção impecável, músicas lindas, ótimos atores, direção e roteiro maravilhosos. Direção de arte e som ótimos! O diretor do cinema não precisa entrar antes da sessão e explicar o pq estar exibindo o filme. Ainda bem que tá sendo exibido. Os americanos fazem cinema muito bem, eles tem muito dinheiro E as pessoas saberão um pouco de Napoleão. Pq a grande maioria não sabe nada de sua história, assim terão uma noção dos acontecimentos importantes de sua vida, mesmo que não seja muito fiel. Maravilhoso!