O diretor Michal Englert conta que se inspirou num personagem real para elaborar o roteiro

Fonte: João Lanari Bo – Vertentes do Cinema

“Nunca Mais Nevará”, dirigido pela dupla polonesa Malgorzata Szumowska e Michal Englert em 2020, parece basear sua estratégia narrativa em falsas pistas: a pista da espiritualidade, máxima do cinema de Andrei Tarkovsky, uma das referências centrais da diretora, é sugerida pelos planos abertos que abrem o espaço logo no início, registrando a caminhada do imigrante solitário da Ucrânia em direção à Polônia. Zhenia, o massagista new-age que carrega o filme – literalmente – nas costas, atravessa sem pestanejar todas as barreiras imigratórias e é recebido em uma ampla e vetusta sala: por trás da mesa uma autoridade cadavérica murmura – “Você não informou quais as línguas que fala”. Zhenia não vacila: “Todas”. Silêncio, e o funcionário, levemente angustiado, confessa: “Eu me sinto estranho perto de você…por favor, ajude-me”. O imigrante levanta-se, massageia aqueles ombros tensionados, e profere um poema:

Eu o estou livrando da tristeza, do sofrimento, da doença

que flui como um riacho negro saindo dos seus pés

correndo pelo seu corpo, cabeça

até minhas mãos

Pode ser uma pista falsa. Zhenia é também um pragmático: leva com ele uma maca desdobrável, entra em transportes coletivos lotados, até se preocupa com permissão de trabalho. Malgo, como é conhecida a diretora, esclarece: “É sempre muito difícil dizer algo sobre espiritualidade ou metafisicamente porque facilmente pode se transformar em algo pretensioso. Tentamos evitar isso adicionando muito humor negro e ironia”. Mas, esclarece: “O que está escondido por trás da história é a coisa mais importante neste filme”. Um enigma etéreo e inefável, mas enigma: na próxima vez que vemos Zhenia, ele está entrando em um condomínio fechado em algum lugar perto de Varsóvia, absurdamente limpo e organizado, casas uniformemente construídas como se fosse um brinquedo infantil, um cenário em miniatura – mas não é, é real: Malgo e Michal tiveram que fingir que estavam interessados em comprar uma casa para entrar na comunidade e organizar as filmagens, sorrateiramente. Foi a única maneira de atravessar o portão e ingressar na seara da upper class polonesa. Zhenia também entrou: ele logrou construir uma clientela devotada dentro dos limites antipáticos daquela coletividade. “Nunca Mais Nevará” combina alusões sociopolíticas com fragilidades emocionais temperadas de humor, entremeadas com imagens oníricas da infância de Zhenia em, of all places…Chernobyl!

Michal Englert conta que se inspirou num personagem real para elaborar o roteiro: imigrante ucraniano batalhando no mercado de massagens dos afluentes (e carentes) poloneses. As massagens permitem acesso às fraquezas, às ausências: podem ser cachorros que desaparecem, mas pode ser o temor da morte, a angústia do fim próximo – ou a perda de um ente próximo. Zhenia mergulha nessas particularidades com suas (paranormais?) habilidades. Uma delas é a hipnose: as imagens que emanam desses estados remetem a uma floresta encantada, onde os pacientes reencontram seus traumas, aliviados da pressão psicológica do cotidiano. O desempenho físico do massagista é intrigante: ele tem mais poder sobre seus clientes do que eles parecem perceber, é capaz de tirá-los de estados de sono hipnótico com um clique suave de seus dedos. De vez em quando, Zhenia aventura-se nos domínios privados de alguém que está dormindo. As diferenças sociais estão lá, Zhenia fala com sotaque russo, mora em um conjunto habitacional remanescente da Polônia comunista – e solitário. Diariamente atravessa a cidade para: massagear Maria, a dona de casa amante de vinho, insatisfeita e distante do marido ciclista; exercitar sua paciência com Ewa, a viúva mordaz e dependente da sua presença; e encontrar Wika, cujo marido tem câncer. Não faltam pistas falsas, insinuações eróticas, bajulação e até desprezo: o massagista resiste, imperturbável, mas sensível; para ele, é como o mundo de “Nunca Mais Nevará” fosse uma caricatura; distancia-se e sorri.

A escolha de Zhenia para o papel principal foi um acerto: ele é Alec Utgoff, nascido na Ucrânia soviética, em Kiev, em 1º de março de 1986 – um mês e pouco antes de Chernobyl. Com dez anos mudou-se para Londres e se formou no prestigioso Drama Centre London. É conhecido pelo seu papel de Dr. Alexei na série “Stranger Things”: não falava nada de inglês e tinha o (suspeito) apelido de Smirnoff. As crianças adoravam, inclusive o filho de Malgo e Micha. A dupla de realizadores, a propósito, conheceu-se na escola de cinema em Lodz: casaram-se, fizeram filmes juntos, ele como fotógrafo, ela como diretora: “Nunca Mais Nevará” é o primeiro que compartilham a direção. Agora, entretanto, estão separados: apesar de incomum, a parceria continua. “A colaboração é possível”, diz Malgo: “nem sempre é fácil, mas acho que nos complementamos bastante”, arremata Michal.

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