Autobiografia de Steven Spielberg dialoga de forma apaixonada com a história do cinema americano

Fonte: Marcelo Hessel – Omelete

Depois de passar alguns anos realizando filmes de reforço moral da América e seus mitos dentro de uma tradição fordiana, como Cavalo de Guerra (2011), Lincoln (2012) e Ponte de Espiões (2015), parece compreensível que Steven Spielberg faça agora em Os Fabelmans, a título de autobiografia, um apanhado não apenas de sua juventude em família mas também repasse a influência que John Ford teve sobre sua formação cinematográfica. Um filme como Ponte de Espiões não existiria sem se escorar em O Homem que Matou o Facínora (1962); quando precisou, no mais, Spielberg sempre encontrou em Tom Hanks seu correlato contemporâneo para James Stewart.

Ford se notabilizou em faroestes e filmes de guerra como um dos grandes responsáveis, no cinema clássico hollywoodiano, em eternizar na tela a mitologia americana, a grandiosidade do seu Destino Manifesto e os desafios morais do desbravamento do Oeste. Cercado de desertos na adolescência no Arizona, e alienado do núcleo familiar pelo que viria a se tornar o divórcio dos seus pais, é compreensível que Spielberg tenha se espelhado nos filmes de Ford para vislumbrar para si mesmo um futuro melhor de horizontes e conquistas. Seu cinema cheio de lares desfeitos sempre lidou – na fantasia, na aventura ou na ficção científica – com esse desafio de encarar o desconhecido e tomar o destino nas mãos quando a segurança familiar nos falha.

É um prazer acompanhar em Os Fabelmans o jovem Spielberg, na figura de seu carismático alter-ego Sam (Gabriel LaBelle), descobrindo truques de efeitos práticos para tornar seus faroestes e filmes de guerra caseiros mais verossímeis. Ainda que tenha vencido a categoria de filme de drama no Globo de Ouro, Os Fabelmans está muito mais próximo da comédia quando abraça a metalinguagem dos filmes dentro do filme. Nesse sentido, é um produto típico da produtora Amblin de Spielberg, em que os amigos escoteiros de Sam substituem os Goonies na sua estratégia de encarar as incertezas do mundo com inocência, franqueza e algum improviso.

O que torna Os Fabelmans mais interessante, porém, não é esse resgate nostálgico, e sim a consciência dos processos e dos custos de reordenar o mundo a partir da fabulação. Discutir essa consciência soa como uma novidade no cinema de Spielberg, que nunca foi muito de metalinguagem e desde sempre tratou a busca pelo controle como a pedra angular do seu trabalho imaginativo. Em uma cena de Os Fabelmans, um estudante mais velho oferece maconha para Sam com a promessa de que a droga revelará que tudo no mundo está fora de controle, “e tudo bem”. Sam recusa o baseado pois diz que já sabe.

Apesar das suas muitas incorreções históricas, o livro Easy Riders, Raging Bulls se tornou um best-seller pelo irresistível compêndio de fofocas envolvendo a Nova Hollywood, e uma delas trata justamente da aversão do cineasta às drogas. Nas festas na casa de Brian De Palma, nos anos 1970, Spielberg fazia o tipo que não se misturava, enquanto o anfitrião pairava sobre os demais como uma estranha figura de autoridade e sabedoria. A história viria a provar mesmo que De Palma esteve à frente dos demais em relação à consciência de que o cinema se presta, acima de tudo, a falsear a realidade para melhor reorganizá-la.

Parece inevitável então, e em boa medida previsível, que Os Fabelmans emule De Palma quando precisa lidar com a natureza revelatória do cinema e as pulsões que engendra. Isso se dá em duas cenas principalmente. Primeiro, o momento em que Sam descobre o adultério diante da moviola, homenagem ao Um Tiro na Noite (1981) de De Palma. Depois, quando Sam assiste meio apartado, sentado na escada da sala, como um espectador, à dissolução da sua família, antes de olhar para um espelho e ver a si mesmo registrando a cena com uma câmera. A velocidade com que Spielberg faz o traveling para o espelho e o tempo mais curto do plano, de corte rápido, envergonhado, denotam a perversidade desse Sam “verdadeiro”, e a exemplo da cena do elevador em Vestida para Matar (1980) os filmes de De Palma sempre recorreram aos espelhos para revelar a natureza falsa-real das imagens, sua dualidade.

Encarar Os Fabelmans apenas como uma memória romantizada da paixão pela arte é ignorar todo esse lado perverso que o olhar do artista carrega consigo, e que está latente e impresso no filme autobiográfico de Spielberg de uma forma muito consciente. A narrativa parte de um lugar testamental para honrar a família e as influências do diretor, mas o que Os Fabelmans consegue realizar ao final é um feito maior: conciliar dois sistemas quase conflitantes de crença, o classicismo de John Ford e o maneirismo de De Palma, e enxergar esses dois pontos da história do cinema como eles são de fato, uma linha contínua, evolutiva, de construção e desvelamento do mundo.

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