Filme faz o elogio do presente e também acerta contas com o passado

Fonte: Marcelo Hessel – Omelete

O uso do extracampo é um elemento central para entender o apelo dos suspenses de M. Night Shyamalan. Em gramática de cinema, o extracampo embute toda informação que afeta a ação mas não está visível no enquadramento. Podem ser sons de fora, o olhar do contraplano ou objetos encobertos, como os aliens por trás da porta em Sinais (2002), de quem só vislumbramos a presença pelo vão iluminado na soleira. Ou então os horrores da Fera de Fragmentado (2016), que imaginamos uma criatura metafórica ao longo do filme até ela se revelar uma monstruosidade literal para nós no final.

A capacidade que Shyamalan tem de combinar o pavor com um potencial imaginativo vem muito desse artifício, e é por isso que os finais dos seus filmes são tão marcantes – menos pelos plot twists do que pela catarse de uma entrega de fantasia e fabulação, que se acumula de tensão ao longo de um filme e é construída num contrato de imersão a dois com o olhar do cineasta e a imaginação do seu público. O que torna um filme como Fim dos Tempos (2008) tão incompreendido é que às vezes o contrato não fica tão claro assim.

O que rola em Fim dos Tempos? Bem, Shyamalan tenta uma transferência radical e de certa forma inviável: passar o que estava no extracampo – ou seja, sons e objetos imateriais, que criamos e completamos com a nossa imaginação – para dentro do quadro, da imagem, sem necessariamente dar corpo a esses sons e objetos. Em outras palavras, o dilema que se coloca no filme é como mostrar o invisível? Como interditar o extracampo para dizer que tudo o que importa já está dentro do enquadramento, diante do nosso nariz? É uma operação disruptiva que – entre outros resultados – partiu o acordo que havia entre Shyamalan e seu público, um acordo que ele só começou a refazer por meio da paródia, em A Visita (2015). Não custa dizer que o responsável por tudo isso está longe de ser Mark Wahlberg.

Saltemos diretamente a Tempo (2021), então, porque este novo filme de Shyamalan, sobre turistas que se descobrem presos numa praia onde o tempo transcorre rápido demais, pode ser muito similar a Fim dos Tempos – a começar pelo fato de ambos escolherem uma mistura de body horror e thriller ambiental para fazer um elogio do viver o presente – ao mesmo tempo em que é a sua negação, uma vez que Shyamalan aprendeu a lição e o contrato oferecido por ele ao espectador nunca foi tão cristalino.

Em sua quarta colaboração seguida com o diretor de fotografia Mike Gioulakis, Shyamalan impõe ao filme um modo rigoroso de encenar, em que tudo se resolve dentro do quadro. A título de preparação do espírito, a dupla elege de início algumas composições que lembram a geometria de Wes Anderson, como as molduras simétricas com dois jarros de refresco na mesa ou três cadeiras de praia. Se uma pessoa tem um ataque de epilepsia no café da manhã do hotel, a câmera vai fazer um movimento quase chicoteado para mostrar isso na hora, do ponto de vista dos protagonistas, num único plano, para que os assombros não fiquem apenas sugeridos no extracampo. A ideia é acondicionar a ação no espaço e no instante, como no gesto de fazer um quadrado com as mãos para brincar de fotógrafo.

Ora, se Tempo se revela em seguida um thriller-de-um-cenário-só parece óbvio que Shyamalan se preocupe com definir os limites do espaço cênico. Que esses enquadramentos sejam com frequência sufocantes (como aquele dos jarros) é parte da proposta do horror corporal, provavelmente o filme mais angustiante da carreira do cineasta e também o mais “confortável”, no sentido de estabelecer com o espectador um acordo de pavor e mistério que nunca é rompido ou negado (até a reviravolta no final é antecipada ao longo do filme com pistas muito claras, para não desagradar o cliente).

Ao contrário de Fim dos Tempos, em que o efeito da violência no corpo é sempre especulativo, elusivo, potencialmente frustrante, aqui aguardamos as trocas para o elenco mais velho e temos o lembrete constante dessa “violência”, quando tentamos reparar na maquiagem dos atores para flagrar uma ruga do tempo a mais. Até mesmo o recurso do blecaute (quando os personagens tentam deixar a praia) serve de intervalo para embalar a trama em pequenos pacotes de horror. O que era invisível e contínuo no filme de 2008, portanto, aqui se torna cruelmente visível e compartimentado, e está o tempo inteiro em cena, mesmo quando a câmera veloz não se detém em ninguém e mesmo que objetos, pessoas ou o mar bloqueiem nossa visão.

Não deixa de ser irônico que Shyamalan se aproxime do torture porn e faça quase um De Férias com Jogos Mortais para expiar o contrato mal resolvido que ele estabelecera com o grande público dos seus suspenses no passado. Frederik Peeters, um dos autores da HQ de 2010 em que Tempo se baseia, deu uma entrevista dizendo que cogitou criar para a trama um desfecho de suspense, mas desistiu argumentando que isso iria contra o espírito da HQ, que ele concebeu mais próxima da fábula. Shyamalan, por sua vez, um artista de capacidade fabular invejável, faz aqui com consciência uma escolha pelo suspense bem amarrado, ainda que isso signifique talvez sacrificar o intangível.

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